PARTE 1
O FILHO
Putin
fala sobre os seus pais, abordando as missões de sabotagem do seu pai, na
Segunda Guerra Mundial, o Cerco de Leningrado e a vida num apartamento comunal
depois da guerra. Não é fácil - sem água quente, sem casa de banho, um wc
fedorento e brigas constantes. Putin passa muito tempo perseguindo ratos com um
pau, na escadaria do prédio.
Sei mais sobre a família do meu Pai do que sobre a da minha
Mãe. O pai do meu Pai nasceu em São Petersburgo e trabalhou como cozinheiro. Eram
uma família muito comum. Um cozinheiro, afinal, é um cozinheiro. Mas,
aparentemente meu avô cozinhou bastante bem, porque depois da Primeira Guerra
Mundial foi-lhe oferecido um emprego no distrito de The Hills, nos arredores de
Moscovo, onde vivia Lenin e toda a família Ulyanov. Quando Lenin morreu, o meu
avô foi transferido para uma das dachas de Stalin. Trabalhou lá durante muito
tempo.
Não foi vítima das purgas?
Não, por qualquer razão deixaram-no viver. Poucas pessoas
que passaram muito tempo junto de Stalin ficaram a salvo, mas o meu avô foi uma
delas. A propósito, sobreviveu a Stalin e, nos últimos anos de aposentadoria,
foi cozinheiro do sanatório da Comissão do Partido da Cidade de Moscovo, em
Ilinskoye.
Os seus pais falavam muito sobre o seu avô?
Tenho uma recordação nítida de Ilinskoye, porque
costumava ir visitá-lo. O meu avô era muito reservado sobre a sua vida passada.
O meus pais não também falavam muito sobre o passado. Naquela época, as pessoas
geralmente não o faziam. Mas quando os parentes vinham visitar-nos, havia
longas conversas ao redor da mesa e eu apanhava alguns episódios, alguns
fragmentos da conversa. Mas os meus pais nunca me disseram nada sobre si
mesmos. Especialmente o meu Pai. Era um homem muito reservado.
Sei que o meu Pai nasceu em São Petersburgo, em 1911.
Depois da Primeira Guerra Mundial, a vida era difícil na cidade. As pessoas
estavam a morrer à fome. Toda a família foi para a casa da minha avó na aldeia
de Pominovo, na região de Tver. A propósito, a casa dela ainda hoje está de pé;
os membros da família ainda passam lá as suas férias. Foi em Pominovo que o meu
Pai conheceu a minha mãe. Tinham ambos 17 anos quando se casaram.
Porquê? Houve alguma razão?
Não, efectivamente, não houve. Você precisa de um motivo para
se casar? O principal motivo foi o amor. E meu Pai iría para o exército em
breve. Talvez cada um deles quisesse algum tipo de garantia. . . . Não sei.
Vera Dmitrievna Gurevich (Professora de Vladimir Putin, da 4ª até à 8ª
classe, na Escola nº 193):
Os pais do *Volodya(diminutivo de Vladimir) tinham uma
vida muito difícil. Pode imaginar como a sua mãe era corajosa para dar à luz aos 41 anos? O pai de Volodya,
disse-me uma vez: “Um dos nossos filhos teria a sua idade”. Presumi que deviam
ter perdido outro filho durante a guerra, mas não me senti à vontade para lhe perguntar.
Em 1932, os pais de Putin vieram para Peter [St.
Petersburgo]. Moravam nos subúrbios, em Peterhof. A mãe foi trabalhar para uma
fábrica e o pai foi quase imediatamente convocado para o exército, onde serviu
numa frota de submarinos. Um ano depois voltou, tiveram dois filhos. Um morreu
alguns meses após o nascimento.
* Os russos usam vários diminutivos para cada nome,
dependendo do grau de familiaridade e afecto.Vladimir Putin é chamado
frequentemente de Vovka e Volodya pelos amigos e pela família.
Obviamente,
quando surgiu a Guerra, o seu pai foi imediatamente para a frente. Ele assentara
praça num submarino e acabara de completar o seu período de serviço. . .
Sim, ele foi para a frente como voluntário.
E a sua mãe?
A minha Mãe recusou-se categoricamente a ir para outro
sítio. Permaneceu em casa, em Peterhof. Quando se tornou extremamente difícil
continuar aí, o irmão dela levou-a para Petersburg. Ele era um oficial da
Marinha e servia no quartel general da armada, em Smolny.* Ele veio buscá-la e
ao bebé e levou-os debaixo do fogo das armas e das bombas.
* Smolny era um colégio privado de meninas antes da
Revolução, quando Lenin se apossou do mesmo e o converteu no quartel general do
seu governo revolucionário. Desde então, tem sido a sede do governo local, em
S. Petersburg.
E o seu avô, o cozinheiro? Não fez nada para ajudá-los?
Não. Naquela época, as pessoas de um modo geral, não
pediam favores. De qualquer maneira, penso que naquelas circunstâncias teria
sido impossível. O meu avô tinha muitos filhos, e todos os seus filhos estavam
na frente.
Então a sua
mãe e o seu irmão saíram de Peterhof, que estava cercado, para Leningrado, que
também estava sitíado?
Para onde é que poderiam ir? A
minha Mãe disse que tinham sido construídos alguns abrigos em Leninegrad, num
esforço para salvar a vida das crianças. Foi num desses abrigos, que o meu
irmão apanhou difteria e morreu.
Como é que ela sobreviveu?
O meu tio ajudou-a. Alimentou-a com as suas rações. Houve
uma altura em que ele foi transferido para outro lugar durante algum tempo, e
ela ficou no limiar da fome. Não é exagero. Uma vez a minha mãe desmaiou de
fome. As pessoas pensaram que ela tinha morrido e colocaram-na junto aos cadáveres.
Felizmente, a minha Mãe acordou a tempo e começou a gemer. Por milagre, estava
viva. Passou por esta situação durante todo o cerco de Leninegrado. Não a
tiraram de lá até o perigo passar.
E onde estava o
seu pai?
O meu Pai esteve sempre no campo de batalha. Tinha sido
enviado para um batalhão de demolições do NKVD. Esses batalhões estavam
empenhados em sabotagem, por trás das linhas alemãs. O meu Pai tomou parte
nessa operação. Havia 28 pessoas nesse grupo.
Foram lançados em Kingisepp. Observaram atentamente as
imediações, colocaram-se em posição na floresta, e conseguiram explodir um
paiol de munições antes de ficarem sem mantimentos. Encontraram alguns
residentes locais, Estonianos, que lhes trouxeram comida, mas mais tarde, entregaram-nos
aos alemães.
Praticamente, não tiveram oportunidade de sobreviver. Os
alemães cercaram-nos por todos os lados e só alguns, incluindo o meu Pai,
conseguiram escapar. Depois começou a caça. Os que restavam da unidade,
dirigiram-se para a linha da frente. Perderam alguns durante o caminho e
decidiram dividir-se. O meu Pai saltou para dentro de um pântano, submerso até
à cabeça e respirou através de um junco ôco até os cães terem passado. Foi como
sobreviveu. Só 4 dos 28 homens da sua unidade regressaram a casa.
Depois encontrou a sua mãe? Ficcaram juntos?
Não, não teve a oportunidade de procurá-la. Enviaram-no
imediatamene para combate. Feriu-se noutro local adverso, o denominado Neva
Nickel. Era uma área pequena e circular. Se estivermos voltados de costas para
o Lago Ladoga, está na margem esquerda do Rio Neva. As tropas alemãs tinham-se
apossado de tudo excepto desse pequeno pedaço de terra. E os nossos soldados
mantiveram esse pedaço durante todo o cerco, calculando que ele ia desempenhar
uma função no avanço final. Os alemães tentaram apanhá-lo. Foi lançado uma
enorme quantidade de bombas em cada metro quadrado daquele pedaço de turfa,
mesmo segundo os padrões dessa guerra. Foi um massacre monstruoso. Mas de
certeza que o Neva Nickel desempenhou um papel importante no final.
Pensa que
pagámos um preço demasiado alto por esse bocado de terra?
Penso que há sempre muitos erros feitos durante a Guerra.
É inevitável. Mas quando estamos a combater, se pensas que todos à tua volta
estão sempre a cometer erros, nunca ganharás. Tens de assumir atitudes
pragmáticas. E tens de pensar na vitória. E nessa altura, eles estavam a pensar
na vitória.
O meu Pai foi gravemente ferido no “Nickel”. Uma vez, ele
e outro soldado receberam ordens de capturar um prisioneiro que devia falar
durante o interrogatório. Rastejaram até uma toca de raposa e estavam à espera,
quando, de repente, surgiu um alemão. O alemão ficou tão surpreendido quanto
eles. O alemão recuperou primeiro, tirou uma granada do bolso e atirou-a ao meu
Pai e ao outro soldado, e foi calmamente embora. Realmente a vida é uma coisa
tão simples.
Como sabe tudo isso? Disse que os seus pais não falavam
muito sobre si.
Esta história foi-me contada
pelo meu Pai. Provavelmente, o alemão
estava convencido que tinha matado os russos. Mas o meu Pai sobreviveu, embora
as suas pernas tivessem sido atingidas com espilhaços. Os nossos soldados
tiraram-no de lá, passado algumas horas. E ninguém se voluntariou.
Para a linha da frente?
Adivinhou. O hospital mais próximo era na cidade e para
chegar lá, tiveram de arrastá-lo durante todo o caminho, através do Neva. Todos
sabiam que seria um suicídio, porque todos os centimetros do caminho eram
atingidos. Claro que nenhum comandante tinha dado aquela ordem. E
ninguém se voluntariou. O meu Pai
já tinha perdido tanto sangue que era visível que iría morrer, se o deixassem
lá.
Por coincidência, um soldado que por acaso era um nosso antigo
vizinho, deparou com ele. Sem dizer uma palavra, percebeu a situação,
carregou o meu Pai nas suas costas e levou-o através do Neva para o outro lado.
Tornaram-se um alvo ideal, mas mesmo assim, sobreviveram. Este vizinho levou o
meu Pai ao hospital, disse-lhe adeus, e
tornou para a frente. Ele disse ao meu Pai que não se tornariam a ver outra
vez. Evidentemente, não acreditava que iria sobreviver no “Nickel” e pensavam
que o meu Pai também não tinha essa oportunidade.
Ele estava
enganado?
Graças a Deus, estava. O meu Pai conseguiu sobreviver. Passou vários meses no
hospital. A minha mãe encontrou-o. Ia vê-lo todos os dias. A minha
Mãe estava quase morta. O meu Pai
viu como ele estava enfraquecida e começou a dar-lhe a sua própria comida, às escondidas
das enfermeiras. De facto, elas perceberam rapidamente. Os médicos perceberam
que ele estava a desmaiar de fome. Quando perceberam a razão, deram-lhe um
grande ‘sermão’ e não permitiram que a minha mãe o visse, durante uns tempos. O
facto é que ambos sobreviveram. Só que o meu Pai ficou a coxear para toda a
vida.
E o vizinho?
O vizinho também sobreviveu! Depois do cerco, foi para outra cidade. Ele e o meu Pai,
encontraram-se em Leninegrado, por mero acaso, vinte anos depois. Podem
imaginar?
Vera Dmitrievna Gurevich:
A mãe de Volodya's era uma pessoa muito carinhosa, generosa,
a imagem da bondade. Não sei se ela terminou a quinta classe. Trabalhou duramente
durante toda a vida. Era zeladora, fazia as entregas de uma padaria à noite,
lavava os tubos de ensaio de um laboratório. Penso que ela chegou msmo a
trabalhar como guarda, num armazém, durante uma época.
O pai de Volodya trabalhava como fabricante de
ferramentas numa fábrica. Era muito apreciado por ser um trabalhador apto e de
boa vontade. A propósito, ele não tinha pensão de deficiência, embora uma das
suas pernas estivesse, efectivamente, aleijada. Em casa, era ele que cozinhava
habitualmente. Costumava fazer um aspic (geleia de carne) maravilhoso.
Recordamos a geleia de Putin até hoje. Ninguém fazia geleia como ele.
......
Depois da Guerra, o meu Pai foi desmobilizado e começou a
trabalhar como trabalhador qualificado,
na Fábrica de Automóveis e Comboios Yegorov. Há uma pequena placa em cada
carruagem de metro que diz, “Esta carruagem nr tal e tal, foi fabricada na
Fábrica de Carros e Comboio Yegorov.”
A fábrica concedeu ao meu Pai, um quarto, num apartamento
comunal, num edifício típico de St. Petersburg, na Alameda Bascov, no centro da
cidade. Tinha um respiradouro para um pátio, e os meus pais viviam no quinto
andar. Não
havia elevador.
Antes da Guerra, os meus pais tinham tido a metade de uma
casa, em Peterhof. Nessa época, tinham muito orgulho no seu nível de vida. Por
isso, viver num apartamento foi dar um passo atrás.
Vera Dmitrievna Gurevich:
Tinham um apartamento horroroso. Era comunal, sem os
requisitos necessários. Não havia água quente, nem chuveiro. O wc era
horrível. Estava virado para o patamar
da escada. Era tão frio, medonho e a escada tinha um corrimão de metal gelado.
As escadas não eram seguras, havia lacunas em todos os lugares.
…...
Aí, no patamar das escadas, aprendi uma lição curta e
duradoura sobre o significado da palavra ‘encurralado’. Havia inúmeras
ratazanas na entrada. Os meus amigos e eu, costumávamos persegui-las com paus.
Uma vez, encontrei uma ratazana enorme e fui atrás dela até à entrada do
apartamento e encurralei-a num canto. Ela não tinha para onde fugir. De
repente, deu meia volta e atirou-se a mim. Fiquei surpreendido e assustado. Agora a
ratazana estava a encurralar-me. Saltei através do patamar e corri escadas
abaixo. Felizmente, fui um pouco
mais rápido e consegui fechar a porta mesmo no nariz dela.
Vera Dmitrievna Gurevich:
Praticamente não havia cozinha. Era um canto quadrado, escuro e sem janelas. Num lado
tinha um fogão a gás e uma banca no outro. Não havia espaço para poder
circular.
Ao lado dessa presumível cozinha viviam os vizinhos, uma
família de três pessoas. E os outros vizinhos, um casal de meia idade, viviam
na porta a seguir. O apartamento era comunal. Os Putin estavam reduzidos a um quarto. Pelos padrões dessa época, era aceitável, porque media 20
metros quadrados.
....
Uma família judia, um casal idoso e a filha, Hava, viviam
no nosso apartamento comunal. Hava era uma mulher feita, mas como os adultos
costumam dizer, a sua vida não tinha corrido bem. Nunca casou e ainda vivia com
os pais.
O pai era alfaiate e, embora parecesse muito idoso,
trabalhava na sua máquina de costura dias a fio. Eram judeus religiosos. Não
trabalhavam no Sabbath, e o ancião recitava o Talmud. Uma vez, não consegui
aguentar e perguntei-lhe o que estava a recitar. Ele explicou-me o que era o
Talmud e perdi imediatamente o interesse.
Como é frequente num apartmento comunal, as pessoas de
vez em quando discordavam. Eu queria sempre defender os meus pais e falava em
seu nome. Devo explicar que me dava muito bem com esse casal idoso e brincava muitas
vezes, no lado do apartamento que lhes pertencia. Bom, um dia, quando eles
estavam a altercar com os meus pais, intrometi-me. Os meus pais ficaram
furiosos. A reacção deles foi um choque enorme para mim; era incompreensível.
Eu estava do lado deles e eles disseram-me: “Mete-te na tua vida!” Por quê?
Simplesmente não conseguia compreender. Mais tarde, compreendi que os meus pais
consideravam a minha boa relação com o casal idoso e a afeição deles por mim
muito mais importante que esses pequenas brigas da cozinha.
Depois deste incidente, nunca mais me envolvi em brigas
de cozinha. Logo que eles começavam a discutir, ia para o nosso quarto ou para
o quarto dos idosos. Não me dizia respeito.
Também havia outros pensionistas a viver no nosso
apartamento, embora não estivessem lá muito tempo. Tiveram a ver com o meu baptismo.
Baba Anya era religiosa e costumava ir à igreja. Quando nasci, ela e a minha mãe
baptizaram-me. Mantiveram-no em segredo do meu Pai, que era membro do partido e
secretário da organização do partido, na sua fábrica.
Muitos anos mais tarde, em 1993, quando trabalhei no
Conselho Municipal de Leninegrado, fui a Israel como parte de uma delegação
oficial. A minha Mãe deu-me a minha cruz de baptismo para ser abençoada no
Santo Sepulcro. Fiz como ela me pediu e coloquei a cruz à volta do pescoço.
Nunca mais a tirei desde então.
A seguir:
PARTE 2
O ALUNO
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