Entrevista
de Vladimir Putin ao The Financial Times.
Lionel Barber: Senhor
Presidente, daqui a pouco vai dirigir-se para Osaka, na qualidade do estadista mais
experiente do G20. Ninguém esteve em tantas reuniões internacionais deste grupo
e do G7, nos últimos 20 anos, enquanto o Snr. esteve no comando da Rússia.
Antes de falarmos sobre o programa do G20 e o que espera alcançar, sabemos que
há tensões crescentes entre os Estados Unidos e a China no comércio e o risco
de conflito no Golfo. Ficaria muito grato se pudesse falar um pouco sobre si e como viu o mundo mudar nos últimos 20 anos, enquanto esteve no poder.
Presidente da Rússia, Vladimir
Putin: Primeiro,
eu não estive no poder ao longo de todos esses 20 anos. Como deve saber, fui Primeiro
Ministro durante quatro anos, e essa posição não é a autoridade máxima da Federação
Russa. Mas, mesmo assim, estou há muito tempo no governo e nos escalões
superiores, para poder julgar o que está a mudar e como. Na verdade, acabou de
dizê-lo, perguntando o que mudou e como. Mencionou as guerras comerciais e os
desenvolvimentos do Golfo Pérsico. Diria, com cautela, que a situação não mudou
para melhor, mas, continuo optimista, até certo ponto. Mas, com toda a
franqueza, devo dizer que a situação se tornou mais dramática e explosiva.
Lionel Barber:
Acredita que, agora, o mundo está mais fragmentado?
Vladimir Putin: Claro,
porque durante a Guerra Fria, o pior foi a própria Guerra Fria. É verdade. Mas, pelo
menos, havia algumas regras às quais todos os participantes na comunicação
internacional, mais ou menos, aderiram ou tentaram seguir. Agora, parece que
não há regras nenhumas. Neste sentido, o mundo tornou-se mais fragmentado e
menos previsível, o que é a condição mais importante e lamentável.
Lionel
Barber: Vamos voltar a este mundo sem
regras, mais fragmentado, mais interactivo. Mas primeiro, Snr. Presidente, pode
dizer-nos o que deseja alcançar em Osaka, em termos do seu relacionamento com as outras partes? Quais são os seus principais objectivos para a Cimeira?
Vladimir Putin: Gostaria muito que os participantes
deste acontecimento - em minha opinião, hoje o G20 é um fórum de desenvolvimento
económico internacional fundamental - portanto, gostaria que os membros do G20
reafirmassem a sua intenção – pelo menos a intenção - de elaborar algumas regras gerais que todos
seguiriam e demonstrar o seu compromisso e empenho em consolidar as
instituições financeiras e comerciais internacionais.
Tudo
o resto são pormenores que complementam as questões principais, de uma maneira ou de outra. Claro que apoiamos
a presidência do Japão. Quanto ao desenvolvimento da tecnologia moderna, do
mundo da informação, da economia da informação, bem como a atenção dos nossos
colegas japoneses para questões como a longevidade e o meio ambiente - tudo
isso é extremamente importante e, claro que apoiaremos e participaremos em
todas esses debates. Mesmo que seja difícil esperar quaisquer avanços ou
decisões históricas nas condições actuais; dificilmente podemos confiar hoje
nessas mesmas decisões. Mas, de qualquer forma, há esperança de que, no mínimo,
durante essas discussões gerais e reuniões bilaterais, possamos atenuar as
divergências existentes e estabelecer uma base, uma base para o movimento
positivo avançar.
Lionel Barber: Irá ter
uma reunião com Mohammad bin Salman em Osaka. Podemos esperar uma extensão do
acordo actual sobre a produção de petróleo? Haverá limitações?
Vladimir Putin: Como
sabe, a Rússia não é membro da OPEP, apesar
de estar entre os maiores produtores do mundo. Penso que a nossa produção
diária é estimada em 11,3 milhões de barris. No entanto, os Estados Unidos
surgiram à nossa frente. Acreditamos, porém, que os nossos acordos de
estabilização de produção com a Arábia Saudita e a OPEP, em geral, tiveram um
efeito positivo na estabilização e previsão do mercado.
Acredito
que ambos estes produtores de energia, neste caso, países produtores de
petróleo e os consumidores estão interessados nisso, porque, presentemente, a
estabilidade está completamente em falta. E os nossos acordos com a Arábia
Saudita e com outros membros da OPEP, fortalecem,
sem dúvida, a estabilidade.
Se
vamos prolongar o acordo, irá descobrir nos próximos dias. Tive uma reunião
sobre esta questão com os administradores das nossas maiores empresas de petróleo
e com membros do Governo, precisamente antes desta entrevista.
Lionel Barber: Eles
estão um pouco frustrados. Gostariam de produzir mais. Correcto?
Vladimir Putin: Têm uma
política inteligente. Não se trata de aumentar a produção, embora seja um
componente importante no trabalho das grandes empresas petrolíferas. É sobre a
situação do mercado. Eles têm uma visão abrangente da situação, bem como das
receitas e das despesas. Claro que também pensam em impulsionar a indústria, em
investimentos oportunos, em maneiras de atrair e usar tecnologia moderna, bem
como tornar esta indústria vital mais atraente para os investidores.
No
entanto, os aumentos acentuados de preços ou as quedas dos mesmos, não
contribuirão para a estabilidade do mercado e não estimularão o investimento.
Por esta razão é que discutimos todos estes problemas na sua totalidade, hoje.
Lionel Barber: Senhor
Presidente, o Snr. observou quatro presidentes americanos bem de perto e talvez
cinco, teve uma experiência directa com todos eles. Então, como é que o Snr.
Trump é diferente?
Vladimir Putin: Somos
todos diferentes. Não há duas pessoas iguais, assim como não há conjuntos
idênticos de impressões digitais. Qualquer um tem as suas próprias vantagens e
deixa os eleitores julgarem as suas deficiências. No geral, mantive relações
suficientemente boas e equilibradas com todos os líderes dos Estados Unidos. Tive
a oportunidade de comunicar mais activamente com alguns deles.
O
primeiro Presidente dos EUA com quem entrei em contacto foi Bill Clinton. De um modo geral, considerei essa experiência como positiva. Estabelecemos laços
suficientemente estáveis e semelhantes a negócios por um curto período de tempo,
porque o seu mandato já estava a chegar ao fim. Eu era apenas um jovem
presidente que acabara de começar a trabalhar. Continuo a recordar como ele
estabeleceu relações de parceria comigo. Sou-lhe muito grato por essa razão.
Houve
ocasiões diferentes e tivemos que lidar com vários problemas com todos os outros
colegas. Infelizmente, muitas vezes envolveu debates e as nossas opiniões não
coincidiram em alguns assuntos que, em minha opinião, podem ser chamados de
aspectos-chave para a Rússia, para os Estados Unidos e para o mundo inteiro.
Por exemplo, isso inclui a retirada unilateral dos EUA do Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM Treaty) que,
como sempre acreditamos e como ainda estou convencido, foi a pedra angular de
todo o sistema internacional de segurança.
Debatemos
esse assunto durante longo tempo, argumentamos e sugerimos várias soluções.
De qualquer maneira, fiz tentativas muito enérgicas para convencer os nossos
parceiros americanos a não se retirarem do Tratado. E, se o lado dos EUA ainda
quisesse retirar-se do Tratado, deveria tê-lo feito de modo a garantir a
segurança internacional durante um longo período histórico. Sugeri-o, já o
discuti em público e repito que fi-lo porque considero que esse assunto é muito
importante. Sugeri trabalhar em conjunto em projectos de defesa antimísseis que
deveriam ter envolvido os Estados Unidos, a Rússia e a Europa. Esses mesmos
projectos estipulavam parâmetros específicos de cooperação, determinavam
abordagens de mísseis perigosos e previam o intercâmbio de tecnologia, a
elaboração de mecanismos de tomada de decisões, etc. Eram propostas completamente
específicas.
Estou
convencido de que, hoje, o mundo seria um lugar diferente, se nossos parceiros
dos EUA tivessem aceitado esta proposta. Infelizmente, não aconteceu. Podemos
ver que a situação está a desenvolver-se noutra direcção; estão a surgir novas armas
e tecnologia militar de ponta. Pois bem, não é a nossa escolha. Mas, hoje,
devemos pelo menos fazer todo o possível para não agravar a situação.
Lionel
Barber: Senhor Presidente, o Snr. é um estudante de
História.Manteve horas de horas de conversações com Henry Kissinger. Quase
certamente leu o livro dele, World Order [Ordem Mundial]. Com o Sr. Trump, vimos
algo novo, algo muito mais conciliável. Ele é muito crítico a respeito de
alianças e aliados na Europa. É algo vantajoso para a Rússia?
Vladimir Putin: Seria melhor perguntar qual seria a vantagem dos
Estados Unidos, neste caso. O Sr. Trump não é um político de carreira. Ele tem
uma visão mundial distinta, bem como dos interesses nacionais dos EUA. Não
aceito muitos dos seus métodos quando se trata de resolver problemas. Mas sabe
o que penso? Considero o Sr.Trump uma pessoa brilhante. Sabe muito bem o que os
seus eleitores esperam dele.
Apesar
do relatório Mueller, a Rússia foi acusada e, por estranho que pareça, ainda
continua a ser culpabilizada, de uma suposta interferência na eleição dos EUA.
O que aconteceu na realidade? Trump olhou para a atitude dos seus opositores e
viu mudanças na sociedade americana e aproveitou-se disso.
Estamos
ambos a conversar antes da reunião do G20. É um fórum económico e, sem dúvida,
haverá debates sobre globalização, comércio global e finanças internacionais.
Alguém
já pensou quem realmente beneficiou e que vantagens foram obtidas com a
globalização, cujo desenvolvimento temos observado e do qual participamos nos
últimos 25 anos, desde a década de 1990?
A
China fez uso da globalização, em particular, para tirar milhões de chineses da
pobreza.
O
que é que aconteceu nos Estados Unidos e como é que aconteceu? Nos Estados
Unidos, as principais empresas americanas – as empresas, os seus
administradores, accionistas e sócios – fizeram uso desses benefícios. A classe
média dificilmente beneficiou com a globalização. O salário líquido nos EUA
(provavelmente falaremos mais tarde sobre o rendimento real da Rússia, que
precisa de atenção especial do governo). A classe média dos Estados Unidos não
melhorou com a globalização; ficou de fora, quando essa torta foi dividida.
A
equipa de Trump percebeu esta situação com muita lucidez e clareza, eles
usaram-na na campanha eleitoral. É onde devem procurar as razões por trás da
vitória de Trump, em vez de só falar de alguma suposta interferência
estrangeira. É deste assunto que devemos falar, inclusive quando se trata da
economia global.
Acredito
que isso possa explicar as decisões económicas aparentemente extravagantes e
até mesmo as relações do Presidente Trump os com seus parceiros e aliados. Ele
está convencido de que a distribuição dos recursos e dos benefícios da
globalização, na década passada, foi injusta para os Estados Unidos.
Não
vou discutir se foi justo ou não, e não vou dizer se o que ele está a fazer é
certo ou errado. Gostaria de compreender os seus motivos, sobre os quais me
interrogou. Talvez eles possam explicar o seu comportamento incomum.
Lionel
Barber: É indiscutível que quero quero voltar à economia russa. Mas o
que disse é absolutamente fascinante. Aqui está o Presidente da Rússia, a
defender a globalização juntamente com o Presidente Xi, enquanto o Sr. Trump
está a atacar a globalização e a falar sobre America First. Como
explica este paradoxo?
Vladimir
Putin: Não considero que o desejo do Presidente dos EUA de colocar
os EUA em primeiro lugar seja um paradoxo. Eu quero que a Rússia seja a
primeira, e não é nada de espantoso. Não há nada fora do comum nesse facto. Em
relação a estar a atacar algumas manifestações da globalização, já comentei. O
Presidente Trump parece acreditar que os resultados da globalização poderiam ter
sido muito melhores para os Estados Unidos, do que são. Estes resultados da
globalização não estão a produzir o efeito desejado para os Estados Unidos.
Assim, o Presidente dos EUA está a iniciar esta campanha contra certos
elementos da globalização. Isto diz respeito a todos, principalmente aos
principais participantes do sistema de colaboração económica internacional,
incluindo os aliados.
Lionel
Barber: Senhor Presidente, o Snr. teve muitas reuniões com o
Presidente Xi, e a Rússia e a China aproximaram-se indiscutivelmente. O senhor não
estará a colocar muitos ovos na cesta da China? Porque a política externa
russa, inclusive sob sua liderança, sempre teve a virtude de dialogar com
todos.
Vladimir Putin: Primeiro de tudo, temos ovos suficientes, mas não há
muitas cestas onde esses ovos possam ser colocados. Este é o primeiro ponto.
Em segundo lugar, avaliamos sempre os riscos.
Em terceiro lugar, as nossas relações com a China não são motivadas por
considerações políticas e oportunismo. Permita-me salientar que o Tratado de
Amizade com a China foi assinado em 2001e se a memória não me trai, muito antes
da situação actual e muito antes das actuais divergências económicas, para
dizer o mínimo, entre os Estados Unidos e a China.
Não
precisamos de nos unir a nada e não precisamos de dirigir a nossa política contra
ninguém. De facto, a Rússia e a China
não estão a conduzir a sua política contra ninguém. Estamos apenas a
concretizar consistentemente os nossos planos para expandir a cooperação.
Fazêmo-lo desde 2001, e estamos apenas a cumprir coerentemente esses planos.
Veja
o que está lá escrito. Não fizemos nada que transcenda a estrutura destes acordos.
Portanto, não há nada de pouco comum, nesta situação e não deve procurar salientar quaisquer implicações na reaproximação sino-russa. Claro que avaliamos os
desenvolvimentos globais actuais; as nossas posições coincidem em vários
assuntos da agenda global actual, incluindo a nossa atitude em relação ao
cumprimento das regras geralmente aceitas no comércio, sistema financeiro
internacional, pagamentos e liquidações.
O
G20 desempenhou um papel muito concreto. Desde a sua criação, em 2008, quando
deflagrou a crise financeira, o G20 concretizou muitas coisas úteis para
estabilizar o sistema financeiro global, para desenvolver o comércio mundial e
assegurar a sua estabilização. Estou a falar do aspecto fiscal da agenda
global, a luta contra a corrupção, etc. A China e a Rússia aderem a este
conceito.
O
G20 fez bastante ao defender as mudanças de cotas no Fundo Monetário Internacional
e no Banco Mundial. Quer a Rússia, quer a China partilham essa abordagem.
Considerando o grande aumento na participação económica global dos mercados
emergentes, isto é justo e correcto e temos salientado esta posição desde o
início. E estamos contentes que continue a desenvolver-se e a estar alinhados
com as mudanças no comércio global.
Nos
últimos 25 anos (penso que são 25), a participação dos países do G7 no PIB
global caiu de 58% para 40%. Até certo ponto, também se reflectiu nas instituições
internacionais. Esta é a posição comum da Rússia e da China. É justa, e não tem
nada de especial.
Sim,
a Rússia e a China têm muitos interesses coincidentes, é verdade. É isto que
motiva os nossos contactos frequentes com o Presidente Xi Jinping. Claro que
também estabelecemos relações pessoais muito amistosas e isso é natural.
Portanto,
estamos a alinhar-nos com o nosso programa bilateral que foi formulado em 2001,
mas respondemos rapidamente a desenvolvimentos globais. Nunca dirigimos as
nossas relações bilaterais contra ninguém. Não estamos contra ninguém, somos a
nosso favor.
Lionel
Barber: Sinto-me grato por este suprimento de ovos ser forte.
Mas o ponto sério, Senhor Presidente, é que o senhor está familiarizado com o
livro de Graham Allison, The Thucydides's Trap. O
perigo de tensões ou risco de conflito militar entre uma potência dominante e
uma potência em ascensão, EUA e China. Considera que há risco de conflito
militar, ainda no seu tempo, entre a Rússia, os EUA e a China?
Vladimir
Putin: Sabe, toda a História da Humanidade esteve sempre cheia
de conflitos militares, mas desde o aparecimento das armas nucleares o risco de
conflitos globais diminuiu, devido às consequências trágicas potenciais
mundiais para toda a população do planeta no caso de tal conflito acontecer entre
dois estados nucleares. Espero que não chegue a esta situação.
No
entanto, é claro que temos de admitir que, por um lado, não se trata só dos
subsídios industriais da China ou, por outro lado, da política tarifária dos
Estados Unidos. Em primeiro lugar, falamos de plataformas de
desenvolvimento diferentes, por assim dizer, na China e nos Estados Unidos. São dois
países diferentes e o senhor, na qualidade de historiador, provavelmente
concordará comigo. Provavelmente têm filosofias diferentes quer no que respeita à política externa e à interna.
Mas
gostaria de partilhar algumas observações pessoais consigo. Não se trata de
relações aliadas com um país ou um confronto com o outro - Estou apenas a analisar o que está a acontecer neste
momento. A China está a mostrar lealdade e flexibilidade aos parceiros e aos
opositores. Talvez esteja relacionado com as características históricas da
filosofia chinesa, a sua abordagem para construir relações.
Por esta razão, não creio que haja quaisquer ameaças da China. Realmente, não
consigo imaginá-lo. Mas é difícil dizer se os Estados Unidos teriam paciência
suficiente para não tomar decisões precipitadas e respeitar os seus parceiros,
mesmo que haja divergências. Mas, espero, gostaria de repetir novamente - espero
que não haja nenhum confronto militar.
Lionel
Barber: Controlo de armas. Sabemos que o acordo INF está
em grave risco. Existe algum lugar, do ponto de vista da Rússia, para futuros
acordos de controleo de armas, ou estamos numa nova fase, em que é provável
vermos uma nova corrida armamentista nuclear?
Vladimir Putin: Acredito que haja esse risco.
Como
disse anteriormente, os Estados Unidos retiraram-se unilateralmente do
Tratado ABM e, recentemente também, deixaram o Tratado de Forças
Nucleares de Alcance Intermediário (INF Treaty). Mas desta vez, não só
desistiram, como também encontraram um motivo para renunciar e esse motivo foi
a Rússia. Não creio que a Rússia signifique algo para eles nesse caso, porque
este teatro de guerra, provavelmente, não interessa aos Estados Unidos, apesar
da expansão da NATO e do contingente da NATO perto das nossas fronteiras. O facto
permanece: os EUA retiraram-se do Tratado. Agora, a agenda está direccionada
para o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (New START). Espero
conseguir falar com Donald, se nos encontrarmos em Osaka.
Dissemos
que estamos prontos para manter conversações e prolongar este tratado entre os
Estados Unidos e a Rússia, mas não vimos nenhuma iniciativa relevante da parte
dos nossos parceiros americanos. Eles
mantém-se em silêncio, e o tratado expirará em 2021. Portanto, se não
começarmos as conversações agora, ele acabará, porque não haveria tempo nem
para as formalidades.
A nossa conversa anterior com Donald mostrou que os americanos parecem
interessados nestas conversações, mas não estão a dar nenhum passo prático.
Portanto, se este tratado deixar de existir, não haverá nenhum instrumento no
mundo para reduzir a corrida armamentista. E isso é péssimo.
Lionel
Barber: Exactamente, estão preparados para lutar. Existe alguma
oportunidade de um acordo triangular entre a China, a Rússia e os EUA sobre
forças nucleares intermediárias, ou isso é uma quimera, um plano impossível? O Snr. apoiaria essa iniciativa?
Vladimir Putin: Como disse no início, apoiaremos qualquer acordo que
promova a nossa causa, isto é, que nos ajude a conter a corrida armamentista.
Deve dizer-se que, até agora, o nível e a escala do desenvolvimento das forças
nucleares da China são muito mais baixos do que nos Estados Unidos e na Rússia.
A China é uma enorme potência que tem capacidade para construir o seu potencial
nuclear. Provavelmente acontecerá no futuro, mas até agora as nossas
capacidades são dificilmente comparáveis. A Rússia e os Estados Unidos são as
principais potências nucleares, razão pela qual o acordo foi assinado entre
eles. Sobre a China unir-se a esses esforços, pode fazer essa pergunta aos
nossos amigos chineses.
Lionel
Barber: A Rússia é uma potência do Pacífico, bem como uma
potência europeia e asiática. É uma potência do Pacífico. O Snr. viu o que os
chineses estão a fazer em relação à grande acumulação de forças na respectiva
Marinha e a sua força marítima. Como lida com estes problemas potenciais de
segurança, disputas territoriais no Pacífico? Será que a Rússia tem um papel a
desempenhar num novo arranjo de segurança?
Vladimir Putin:Mencionou o aumento das forças navais na China. A
despesa total da defesa da China é de 117 biliões de dólares, se a memória não
me falha. A despesa dos EUA com a defesa é cerca de 700 biliões de dólares. E
você está a tentar assustar o mundo com o aumento do poderio militar da China?
Não funciona com esta escala de despesas militares. Não, não funciona.
Quanto à
Rússia, continuaremos a desenvolver a nossa Frota do Pacífico, como planeado.
Naturalmente, também respondemos aos desenvolvimentos mundiais e ao que
acontece nas relações entre outros países. Podemos observá-lo, mas não afecta os
nossos planos de desenvolvimento da defesa, incluindo os nossos planos para o
Extremo Oriente da Rússia.
Somos
auto-suficientes e estamos confiantes. A Rússia é a maior potência continental.
Mas temos uma base de submarinos nucleares no Extremo Oriente, onde estamos a
desenvolver o nosso potencial de defesa de acordo com os nossos planos, também
para que possamos garantir a segurança na Rota do Mar do Norte, cujo
desenvolvimento estamos a planear.
Tencionamos
atrair muitos parceiros para esse esforço, incluindo os nossos parceiros
chineses. Podemos até chegar a um acordo com os transportadores americanos e
com a Índia, o que também mostra o interesse deles, na Rota do Mar do Norte.
Gostaria
de dizer que também estamos preparados para a cooperação na região da
Ásia-Pacífico, e tenho motivos para crer que a Rússia pode dar um contributo
considerável, concreto e positivo, para estabilizar a situação.
Lionel
Barber: Podemos regressar ao assunto da Coreia do Norte? Como é
que avalia a situação actual? Acredita que, a longo prazo, qualquer negociação
ou acordo terá de aceitar o facto de que a Coreia do Norte possui armas
nucleares e que, simplesmente, não é possível o desmantelamento total? Se eu
puder acrescentar, Senhor Presidente, pergunto porque, de facto, a Rússia tem
uma fronteira relativamente pequena, mas de qualquer modo, tem uma fronteira
com a Coreia do Norte.
Vladimir
Putin: Como sabe, quer reconheçamos a Coreia do Norte como uma
potência nuclear ou não, o número de bombas nucleares não diminuirá. Devemos
proceder de acordo com as realidades actuais que são - as armas nucleares representam uma ameaça à paz e segurança internacionais.
Outra questão pertinente é de onde parte este problema. As tragédias da Líbia e
do Iraque motivaram muitos países a garantir a sua segurança a todo custo.
O que deveríamos estar a falar não é como fazer com que a Coreia do Norte se desarmae,
mas como garantir a segurança incondicional da Coreia do Norte e como fazer com
que qualquer país, incluindo a Coreia do Norte, se sinta seguro e protegido
pelo Direito Internacional, que deve ser escrupulosamente respeitado por todos
os membros da comunidade internacional. É nisso que devemos pensar.
Devemos
pensar nas garantias que devemos usar, como base das conversações com a Coreia
do Norte. Devemos ter paciência, respeitá-la e, ao mesmo tempo, ter em conta os
perigos decorrentes desta situação, os perigos do estatuto nuclear e a presença
de armas nucleares.
Naturalmente, a situação actual está repleta de cenários imprevisíveis, que
devemos evitar.
Lionel
Barber: Claro que pensou nesta conjuntura, como analista
experiente sobre segurança e política externa e como estratega. Como analisa a
situação da segurança do Norte da Ásia nos próximos cinco a dez anos, visto que
tem a Rússia, a China, a Coreia e o Japão?
Vladimir
Putin: Mencionou correctamente que temos uma fronteira comum,
mesmo que seja pequena, com a Coreia do Norte, portanto, esse problema tem um
impacto directo sobre nós. Os Estados Unidos estão localizados do outro lado do
oceano, e o Reino Unido está longe, enquanto estamos bem aqui, nesta região, e
a faixa nuclear norte coreana não está longe da nossa fronteira. Por esta razão
é que isto nos preocupa directamente e não deixamos de pensar nesse assunto.
Gostaria
de voltar à resposta dada à sua pergunta anterior. Devemos respeitar as legítimas
preocupações de segurança da Coreia do Norte. Devemos demonstrar respeito e
encontrar uma maneira para garantir a sua segurança, que satisfaça a Coreia do
Norte.
Recorda-se
como mudou a situação depois da União Soviética ter adoptado a política de détente/descontração?
Preciso dizer mais alguma coisa?
Lionel
Barber: Senhor Presidente, está há muito tempo no poder ou
muito próximo do poder. Penso que foi em Davos, que eu lhe disse quando nos
conhecemos, que o Snr. não estava no poder, mas apesar disso, atraía sobre si
todos os tiros. Depois de 20 anos no topo ou perto do topo, o seu apetite pelo
risco aumentou?
Vladimir Putin:Não aumentou nem diminuiu. O risco deve ser sempre bem
justificado. Mas não é o caso, quando alguém ade de acordo com o provérbio
popular russo: “Quem não arrisca, nunca bebe champanhe”. Não é este caso. Possivelmente,
os riscos são inevitáveis, quando se tem de tomar certas decisões. Dependendo
da escala de qualquer decisão, os riscos podem ser pequenos ou graves.
Qualquer processo de tomada de decisão é acompanhado de risco. Antes de
arriscar, é preciso avaliar tudo, meticulosamente. Portanto, o risco baseado numa
avaliação da situação e as possíveis consequências das decisões, é possível e
até mesmo inevitável. Riscos insensatos, que negligenciam a situação real e não
antecipam claramente as consequências, são inaceitáveis, porque podem pôr em
risco os interesses de um grande número de pessoas.
Lionel
Barber: Quão grande foi o risco da Síria, comparado com a sua
decisão de intervir?
Vladimir
Putin: Foi bastante alto. No entanto, é claro, pensei
cuidadosamente sobre o mesmo com bastante antecedência, e considerei todas as
circunstâncias, todos os prós e os contras. Ponderei o modo como a situação em
torno da Rússia se desenvolveria e as possíveis consequências. Discuti esse
assunto com meus conselheiros e ministros, inclusive com os responsáveis pelas
instituições de aplicação da lei e outros altos dignatários. A longo prazo,
decidi que o efeito positivo para a Rússia e para os interesses da Federação
Russa do nosso envolvimento activo nos assuntos sírios superaria em muito a
não-interferência e a observação passiva de como uma organização terrorista
internacional crescia cada vez mais perto de nossas fronteiras.
Lionel
Barber: Como foi o retorno em relação ao risco assumido na
Síria?
Vladimir
Putin: Creio que foi bom e positivo. Conseguimos ainda mais do
que eu esperava. Primeiro de tudo, muitos militantes terroristas que planeavam
regressar à Rússia foram eliminados. São vários milhares de pessoas. Estavam a
planear voltar para a Rússia ou para os países vizinhos com os quais não
mantemos nenhum regime de vistos. Ambos estes aspectos são igualmente perigosos
para nós. Esta é a primeira questão.
Em
segundo lugar, de uma maneira ou de outra, conseguimos estabilizar a situação
numa região próxima. Isto também é muito importante. Portanto, fortalecemos
directamente a segurança interna da Rússia. Esta é a terceira questão.
Em
quarto lugar, estabelecemos relações positivas suficientemente boas com todos
os países da região, e as nossas posições na região do Médio Oriente
tornaram-se mais estáveis. De facto, estabelecemos relações muito boas,
semelhantes a negócios, a parcerias e, sobretudo, um relacionamento de aliados,
com muitos países da região, incluindo o Irão, a Turquia e outros países.
Principalmente
e isto diz respeito à Síria, conseguimos, apesar de tudo, preservar o Estado
sírio, e evitamos o caos ao estilo da Líbia. E um cenário de pior teria tido consequências
negativas para a Rússia.
Além do
mais, gostaria de falar abertamente da mobilização das Forças Armadas russas.
As nossas Forças Armadas adquiriam uma experiência prática que não poderiam ter
obtido em exercícios de fogos reais em tempo de paz.
Lionel Barber: Está
comprometido com a permanência do Snr. al-Assad no poder ou, até certo ponto,
podemos esperar ver a Rússia apoiar a transição na Síria, o que não seria como
na Líbia?
Vladimir Putin: Acredito que o povo sírio deve ser livre de escolher o seu próprio futuro. Ao mesmo tempo, gostaria que as acções dos
intervenientes externos fossem consubstanciadas e, assim como no caso dos riscos
que você mencionou, previsíveis e compreensíveis, para que possamos considerar,
pelo menos, nossos próximos movimentos.
Quando
discutimos este assunto recentemente com a administração anterior dos EUA,
dissemos: Suponhamos que Assad renuncie hoje, o que acontecerá amanhã?
O seu
colega fez bem em rir, sim, porque a resposta que recebemos foi muito
divertida. Nem imagina como foi engraçada. Disseram: “Não sabemos.” Mas, quando
não sabe o que acontecerá amanhã, por que é que devemos falar hoje, directa e
francamente? Pode parecer estúpido, mas é assim.
Por esta
razão, preferimos olhar para os problemas atentamente e de todos os ângulos possíveis
e não ter pressa. Claro, estamos perfeitamente conscientes do que está a
acontecer na Síria. Existem razões internas para o conflito e elas devem ser
tratadas. Mas ambos os lados devem fazer a sua parte. Estou a referir-me às
partes em conflito.
Lionel
Barber: Senhor Presidente, esse mesmo argumento aplica-se à
Venezuela? Por outras palavras, não está preparado para ver uma transição na
Venezuela, e está absolutamente comprometido com o Presidente Maduro.
Vladimir
Putin: Oh, parecia que
tínhamos começado muito bem. Por favor, não se ofenda com o que vou dizer a
seguir. Não vai ofender-se, pois não? Sim, começamos muito bem, a falar com seriedade, e
agora você regrediu para as visões estereotipadas sobre a Rússia.
Não temos nada a ver com o que está a acontecer na Venezuela, se sabe o que
quero dizer.
Lionel
Barber: Então, o que fazem, os conselheiros russos em Caracas?
Vladimir
Putin: Vou responder, se você me deixar terminar. Não há
nenhum problema.
Durante
a Presidência de Chávez, vendemos armas à Venezuela sem quaisquer limites ou
problemas. Fizemo-lo absolutamente legais, como se faz em todo mundo e como
qualquer país faz, incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido, a China e a
França. Também o fizemos - vendemos armas para a Venezuela.
Assinámos
contratos para orientar a manutenção desse equipamento militar, que devemos
treinar especialistas locais, assegurar que esse equipamento seja mantido em
prontidão de combate, etc. Fornecemos serviços de manutenção para este
equipamento. Já disse muitas vezes, inclusive aos nossos parceiros americanos:
não há tropas russas na Venezuela. Compreende? Sim, há lá especialistas e
instrutores russos. Sim, estão a trabalhar lá. Apenas recentemente, creio que
há uma semana, um grupo dos nossos consultores e especialistas deixou o país. Mas
eles podem regressar.
Temos um
acordo para que os nossos aviões, de vez em quando, participem nos exercícios.
E é tudo. Estamos a orientar as acções dos rebeldes, como alguns de nossos
parceiros estão a fazer, ou as acções do Presidente Maduro? Ele é o Presidente,
por que controlaríamos os seus actos? Ele está no controlo. Se está bem ou não,
isso é outra questão. Não fazemos nenhum julgamento.
Creio
que muitas coisas poderiam ter sido feitas de maneira diferente no que diz
respeito à economia economia. Mas não nos intrometemos em assuntos internos de
outros países: não é da nossa conta. Investimos lá biliões de dólares,
principalmente no sector do petróleo. E daí? Outros países também estão a fazer
o mesmo.
Parece
que tudo está a ser defendido só pelas armas russas. Não é verdade. Não tem
nada a ver com a realidade. Onde estão os presidentes autoproclamados e os líderes
da oposição? Alguns refugiaram-se mas embaixadas estrangeiras e outros estão
escondidos. O que temos a ver com isso? Este problema deve ser resolvido pelo
próprio povo venezuelano. É tudo.
Lionel
Barber: Estava só a aplicar à Venezuela a sua teoria e a sua experiência de ver
o que aconteceu na Líbia e no Iraque. Supus que, logicamente, o senhor diria:
“Estamos comprometidos com o Sr. Maduro porque não queremos ver uma mudança de
regime imposta do exterior”. Essa é a posição russa? Ou talvez dissesse: “Vamos
apoiar Guaidó, porque temos interesses petrolíferos importantes na Venezuela”?
Vladimir
Putin: Estamos preparados para quaisquer acontecimentos, em
qualquer país, inclusive na Venezuela, se acontecerem de acordo com as normas
internas e com a legislação do país, com a sua Constituição, alinhados com a
vontade do povo.
Penso que
o Estado da Líbia ou do Iraque não teriam sido destruídos, se não tivesse
havido intervenção. Não teria acontecido na Líbia, a situação era completamente
diferente. De facto, Gaddafi escreveu lá os seus livros, expôs as suas teorias,
etc – que não seguiam padrões específicos, e o seu trabalho prático não
obedecia às percepções europeias ou americanas de democracia.
Aliás, o
Presidente da França disse, recentemente, que o modelo democrático americano
difere muito do modelo europeu. Portanto, não há padrões democráticos comuns. E
você – bem, não você propriamente dito, mas os nossos parceiros ocidentais,
querem que uma região como a Líbia tivesse os mesmos padrões democráticos da
Europa e dos EUA? A região tem apenas monarquias ou países com um sistema
semelhante ao que existia na Líbia.
Mas,
tenho certeza de que, como historiador, concordará realmente comigo. Não sei se
concordará publicamente com isto ou não, mas é impossível impor padrões
democráticos franceses ou suíços, actuais e viáveis, aos residentes norte
africanos que nunca viveram de acordo com as condições das instituições
democráticas francesas ou suíças. Impossível, não é verdade? E eles tentaram
impor àqueles povos algo desse tipo. Ou tentaram impor algo que eles nunca tinham
conhecido ou ouvido falar. Tudo isto conduziu ao conflito e à discórdia entre
as tribos. De facto, está a desenrolar-se uma guerra na Líbia.
Então,
por que é que devemos fazer o mesmo na Venezuela? Queremos voltar à diplomacia
do bombardeio? Para que precisamos fazê-lo? É necessário humilhar tanto as
nações latino-americanas no mundo moderno e impor formas de governo ou
dirigentes do exterior?
A
propósito, trabalhamos com o Presidente Chávez porque ele era o presidente. Não
trabalhamos com o Presidente Chávez como indivíduo, mas trabalhamos com a
Venezuela. Por este motivo é que canalizamos investimentos no sector de
petróleo.
E onde
planeamos entregar o petróleo venezuelano ao investir no sector de petróleo?
Como sabe, a Venezuela tem um petróleo único que é entregue, principalmente,
nas refinarias dos EUA. E qual é o mal? Queríamos que o sector venezuelano do
petróleo e do gás trabalhasse de forma constante, previsível e com confiança e
que fizesse entregas às refinarias dos EUA. Não compreendo o que está errado
nesta atitude.
Primeiro,
eles enfrentaram problemas económicos, seguidos de problemas políticos
internos. Deixe-os resolver as coisas sozinhos e esses dirigentes irão chegar
ao poder por meios democráticos. Mas quando alguém entra numa praça, levanta os
olhos para o céu e se proclama presidente? Vamos fazer o mesmo no Japão, nos
Estados Unidos ou na Alemanha. O que vai acontecer? Pode compreender que essa
atitude causará o caos em todo o mundo? É impossível discordar. Haverá caos,
puro caos. Como podem agir assim? Puseram-se a apoiar aquela pessoa [Guaidó]
desde o princípio.
Pode ser
uma excelente pessoa. Pode ser maravilhoso, e os seus planos podem ser bons.
Mas é suficiente aparecer numa praça e proclamar-se presidente? O mundo inteiro
deverá apoiá-lo como presidente? Temos de dizer-lhe que tome parte nas eleições
e as vença e depois trabalharemos com
ele como chefe de Estado.
Lionel
Barber: Vamos falar sobre outra democracia na Europa, o meu
próprio país. Vai ter uma reunião com a Sra. May, que será uma das suas últimas
reuniões antes de ela se demitir do cargo de Primeira Ministra. Considera que
existe a possibilidade de alguma melhoria nas relações anglo-russas e que
podemos sair de algumas dessas questões que são obviamente de grande
sensibilidade, como o caso Skripal? Ou pensa que vamos ficar presos num
congelamento profundo durante os próximos três ou cinco anos?
Vladimir
Putin: Ouça, todo esse alarido sobre espiões e contraespiões,
não tem nenhum valor nas relações entre Estados. Esta historinha de espionagem,
como dizemos, não vale cinco copeques. Ou mesmo 5 libras, pelo assunto. E as
questões relativas às relações entre Estados, são medidas em biliões e atingem
o destino de milhões de pessoas. Como podemos comparar uma coisas com a outra?
A lista
de acusações e alegações recíprocas poderia continuar indefinidamente. Eles
dizem: “Vocês envenenaram os Skripals.” Primeiro: tem de ser provado.
Em
segundo lugar, o cidadão médio ouve e diz: “Quem são estes Skripals?” E sabe-se
que Skripal esteve envolvido em espionagem contra nós [Rússia]. Então, essa
pessoa faz a pergunta seguinte: “Por que nos espiou usando Skripal? Talvez não
devesse fazê-lo? Como sabe as perguntas não têm fim. Devemos deixar que as agências
de segurança tratem disso.
Mas
sabemos que as empresas do Reino Unido (a propósito, tive uma reunião com os nossos
colegas britânicos nesta mesma sala), querem trabalhar connosco, estão a
trabalhar connosco e pretendem continuar a fazê-lo. E nós apoiamos essa intenção.
Parece-me
que a Sra. May, apesar da sua renúncia, não podia deixar de se preocupar,
porque que estes escândalos de espionagem conduziram as nossas relações a um
impasse, assim, não podemos desenvolver os nossos laços normalmente e apoiar os
empresários, que estão a fazer o quê? Não só ganham dinheiro, isso é o que está
à vista. São pessoas que criam empregos e agregam valor, além de fornecerem
receita a todos os níveis do sistema tributário dos seus países. É um trabalho
sério e multifacetado, com os mesmos riscos que você mencionou, incluindo os
riscos relacionados com as operações de negócios. E se adicionarmos uma
situação política imprevisível, eles não poderão trabalhar, de maneira nenhuma.
Compreendo
que tanto a Rússia como o Reino Unido tenham interesse em restaurar totalmente as suas relações. Pelo menos, espero que se dêem alguns passos preliminares. Penso que
seria mais fácil para a Sra. May, talvez, porque ela está de saída e está livre
para fazer o que considera que é certo, importante e necessário sem ter de se
preocupar com algumas consequências políticas internas.
Lionel
Barber: Algumas pessoas podem dizer que uma vida humana vale
mais que cinco centavos. Mas o senhor acredita, Sr. Presidente, o que quer que
tenha acontecido...
Vladimir Putin: Morreu alguém?
Lionel
Barber: Oh, sim. O cavalheiro que tinha um problema com drogas
morreu depois de tocar o Novichok no estacionamento. Quero dizer, alguém fê-lo
por causa do perfume. Foi mais do que uma pessoa que morreu, não os Skripals.
Eu sou apenas ...
Vladimir Putin: Mas... pensa que tudo isso é absolutamente culpa da
Rússia?
Lionel
Barber: Eu não disse isso. Eu
disse que alguém morreu.
Vladimir
Putin: Você não pronunciou essas palavras, mas se nada tem a
ver com a Rússia ... Sim, um homem morreu e é uma tragédia, concordo. Mas o que
têm os russos a ver com isso?
Lionel
Barber: Deixe-me fazer uma pergunta e depois quero falar, de
facto, sobre a economia russa. O Snr. acredita que o que aconteceu em Salisbury
enviou uma mensagem inequívoca para quem estiver a pensar em trair o Estado
russo, que é um jogo limpo?
Vladimir
Putin: De facto, a traição
é o maior crime mais possível e os traidores devem ser punidos. Não estou a
dizer que o incidente de Salisbury seja a maneira de o fazer. De modo nenhum.
Mas os traidores devem ser punidos.
Esse
cavalheiro, Skripal, já havia sido punido. Foi preso, condenado e cumpriu pena
na prisão. Recebeu a sua punição. Por esse assunto, ele não estava em causa.
Por que é que alguém estaria interessado nele? Foi punido. Foi detido, preso,
condenado e passou cinco anos na prisão. Depois foi libertado. Foi isso.
No que
diz respeito à traição, é claro, deve ser punível. É o crime mais desprezível
que se possa imaginar.
Lionel
Barber: A economia russa. O Snr. falou outro dia sobre o
declínio nos salários reais da força de trabalho russa, e o crescimento da
Rússia foi menor que o esperado. Mas, ao mesmo tempo, Senhor Presidente, o Snr. acumula reservas cambiais e reservas internacionais em cerca de 460 bilhões.
O que é que o Snr. está a economizar? Qual é o propósito? Não pode usar um
pouco desse dinheiro para aliviar o lado fiscal?
Vladimir Putin: Deixe-me corrigir alguns detalhes muito pequenos.
Os salários reais não estão em declínio na Rússia. Pelo contrário, eles estão a começar a crescer. Há uma queda na renda disponível para as famílias. Salários e
rendimentos são duas coisas ligeiramente diferentes. O rendimento é determinado
por muitos parâmetros, incluindo os custos do serviço de empréstimo. As pessoas
na Rússia utilizam muitos empréstimos ao consumidor e os pagamentos de juros são
contabilizados como despesas, o que diminui os indicadores de renda real. Além
disso, a economia paralela está a passar pela legalização. Uma parte substancial
dos trabalhadores independentes – creio que 100.000 ou 200.000, já legalizaram os seus negócios. Isso também afecta a renda real da população, a renda disponível.
Essa tendência persistiu nos últimos quatro anos. No ano passado registámos um
pequeno aumento de 0,1%. Não é suficiente. Ainda está dentro da margem de erro.
Mas é um dos problemas sérios que temos de enfrentar e que estamos a resolver.
Os salários reais começaram a crescer recentemente. No ano passado houve um
aumento de 8,5%. Este ano, a taxa de crescimento dos salários reais diminuiu
significativamente devido a uma série de circunstâncias. Quero dizer que
no ano passado vimos um crescimento de recuperação e há alguns outros factores
envolvidos. No entanto, continua. E realmente esperamos que isso tenha um efeito
sobre a renda real das famílias.
Ainda mais porque ultimamente adoptamos uma série de medidas para acelerar o
crescimento das reformas. No ano passado, a taxa de inflacção foi de 4,3%
e, com base nesses resultados, no início deste ano, as pensões foram ajustadas
pela inflação em 7,05%. E estabelecemos um objectivo, uma tarefa – que, estou
certo, será cumprida: ajustar as reformas para uma percentagem acima da
taxa de inflacção.
Agora, a renda real também foi afectada porque tivemos que aumentar o IVA de 18
para 20%, o que afectou o poder de compra das pessoas, porque a taxa de inflacção
ultrapassou 5%.
Por outras palavras, esperávamos que o impacto negativo do aumento do IVA fosse a curto prazo, exactamente o que aconteceu. Felizmente funcionou, e nossos
cálculos mostraram-se correctos. Agora a taxa de inflacção está a descer, a
situação macroeconómica está a melhorar; o investimento está a subir ligeiramente. Podemos ver que a economia superou as dificuldades causadas pelos choques internos e externos. Os choques externos estavam relacionados com restrições e com a queda nos preços de nossos produtos tradicionais de exportação. A
economia estabilizou.
A situação macroeconómica no país é estável. Não é acidental e todas as
agências de rating registaram isso. As três principais agências
elevaram a nossa classificação de investimento. O crescimento económico, no ano
passado, foi de 2,3%. Não consideramos suficiente, é claro, e vamos diligênciar acelerar o ritmo. A taxa de crescimento na produção industrial
foi de 2,9% e até mais alta, chegando a 13% em algumas indústrias (indústria
leve, indústrias de processamento e de vestuário e várias outras). Portanto, no
geral, a nossa economia é estável.
Mas a tarefa mais importante que precisamos de alcançar, é mudar a estrutura da
economia e garantir um crescimento substancial da produtividade do trabalho por
meio de tecnologias modernas, Inteligência Artificial, robótica etc. É exatamente por isso que aumentamos o IVA, para aumentar os recursos
orçamentários para executar determinada parte desse trabalho que é da responsabilidade do Estado, a fim de criar condições para o investimento
privado. Deixe-nos salientar o transporte e outro desenvolvimento de infraestrutura.
Quase ninguém além do Estado está envolvido nisso. Existem outros factores
relacionados com a educação e com a saúde. Uma pessoa que tem problemas de saúde ou não
tem treino, não pode ser eficiente na economia moderna. A lista continua.
Esperamos realmente que, ao iniciar este trabalho em áreas fundamentais de
desenvolvimento, possamos aumentar a produtividade do trabalho e usar essa base
para garantir um aumento na renda e na prosperidade dos nossos cidadãos.
Quanto às reservas, também não está completamente correcto. Temos mais de 500
biliões em reservas de ouro e moeda estrangeira e não 460 biliões. Mas o que precisamos é criar uma rede de segurança que nos faça
sentir confiantes, e usar o juro nos nossos recursos existentes. Se
tivermos mais 7%, podemos gastar esses 7%.
É o que planeamos para o próximo ano, e há uma grande probabilidade de sermos bem-sucedidos. Não pense que esse dinheiro está parado na gaveta. Não! Entretanto, ele cria certas garantias para a estabilidade económica da Rússia.
Lionel Barber: O Banco Central fez um bom trabalho ao ajudar a
garantir a estabilidade macroeconómica, mesmo que alguns dos oligarcas se queixem do encerramento dos bancos.
Vladimir Putin: Para começar, como você certamente sabe, já não há
oligarcas na Rússia. Oligarcas são aqueles que usam sua proximidade com as
autoridades, para auferir super lucros. Temos grandes empresas, privadas ou com
participação do governo. Mas não conheço nenhuma grande empresa que tenha
tratamento preferencial por estar perto das autoridades: não existem.
Quanto ao Banco Central, sim, ele está empenhado numa melhoria gradual do nosso sistema financeiro: empresas ineficientes e de pequena capacidade, assim
como organizações financeiras semi-oficiais estão a deixar o mercado – é um trabalho
em larga escala e complicado.
Mas a questão nada tem a ver com oligarcas ou com as grandes empresas. O facto coisa é que afecta, infelizmente, os interesses do depositante, o cidadão médio. Temos
leis regulamentares importantes que minimizam as perdas financeiras das pessoas e
criam uma certa rede de segurança para elas. Mas cada caso deve ser considerado
individualmente, é claro.
Em geral, o trabalho do Banco Central, em minha opinião, merece apoio. Está
relacionado tanto com a melhoria do sistema financeiro, como com a política ajustada em relação à taxa básica de juros.
Lionel Barber: Senhor Presidente, gostaria de voltar ao Presidente
Xi e à China. Como o Snr. sabe, ele fez uma rigorosa campanha anticorrupção
para limpar o partido, manter a legitimidade e fortalecer esse mesmo partido. Ele também
leu a história da União Soviética, o período em que Gorbachev essencialmente
abandonou o partido e ajudou a destruir o país – a União Soviética. Acha que o
Snr. Xi tem razão na sua abordagem da questão chinesa? E que lições o Snr. tira para a Rússia? Se puder acrescentar: Mencionou algo interessante há
alguns anos sobre o colapso da União Soviética, como sendo a maior tragédia
geopolítica do século XX.
Vladimir Putin: Esses dois problemas não estão relacionados. Quanto à
tragédia relacionada com a dissolução da União Soviética, é óbvia. Quis falar,
em primeiro lugar, do aspecto humanitário. Cerca de 25 milhões de russos
étnicos viviam no exterior, quando souberam, pela televisão e pelo rádio, que a
União Soviética deixara de existir. Ninguém perguntou a opinião deles. A
decisão foi tomada e ponto final.
Como sabe, são questões de democracia. Houve uma pesquisa de opinião,
um referendo? A maioria (mais de 70%) dos cidadãos da URSS falou a favor da manutenção do Estado soviético. Tomou-se a decisão de dissolver a URSS, mas ninguém
perguntou ao povo. De repente, 25 milhões de russos étnicos encontraram-se a viver fora da Federação Russa. Claro que foi uma tragédia! Uma grande tragédia! E
relações familiares? Empregos? Distâncias? Foi um completo desastre, um desastre total.
Fiquei surpreendido ao ver os comentários posteriores sobre o que eu disse, em
particular, na comunicação mediática ocidental. Antes de falar, precisariam de aprender a viver
tendo o pai, o irmão ou qualquer parente próximo reduzido a estrangeiro e a viver num país diferente, onde foi preciso recomeçar a vida, completamente, a partir do zero. Falei sobre esse assunto, algo que o ocidente não sabe o que seja.
Quanto ao partido e à construção do partido na China, são questões que competem
ao povo chinês decidir; nós não interferimos. A Rússia de hoje tem os seus
próprios princípios e regras de vida, e a China, com seus 1,35 bilião de
pessoas, tem as suas. Tente governar um país com essa população. China não é o
Luxemburgo, com todo o respeito por esse maravilhoso país. Portanto, é necessário
dar ao povo chinês a oportunidade de decidir como organizar a sua vida.
Lionel Barber: Afloro, novamente, uma grande questão. No início da nossa
conversa, falei de fragmentação. Outro fenómeno hoje, é que há uma reacção
popular contra as elites e contra o establishment. O Snr. viu isso
– o Brexit na Grã-Bretanha. Talvez estivesse a falar sobre os EUA de
Trump. O Snr. viu-o com a AFD na Alemanha; observou-o na Turquia e presenciou-o no mundo árabe. Por quanto tempo pensa que a Rússia pode permanecer imune a esse movimento global de reacção contra
o establishment?
Vladimir Putin: É preciso considerar as diferentes realidades, caso
a caso. Claro, existem algumas tendências, mas são apenas gerais. Em cada
caso particular, ao olhar para a situação e como ela se desenrola, é preciso ter em conta a História do país, as suas tradições e realidades.
Durante quanto tempo é que a Rússia continuará a ser um país estável? Quanto mais,
melhor. Porque muitas outras coisas e sua posição no mundo, dependem da
estabilidade, da estabilidade política interna. Possivelmente e em última análise, o bem-estar
das pessoas depende, principalmente, da estabilidade.
Uma das razões, a razão interna para o colapso da União Soviética, foi que a
vida era difícil para as pessoas, cujos salários eram muito baixos. As lojas
estavam vazias, e as pessoas perderam o desejo intrínseco de preservar o
Estado.
Pensavam que as coisas não poderiam piorar, não importava o que acontecesse. De facto, a vida tornou-se pior para muitas pessoas, especialmente no início
da década de 1990, quando a protecção social e os sistemas de saúde entraram em
colapso, e a indústria estava a desmoronar. Podia ser ineficaz, mas pelo menos
as pessoas tinham empregos. Depois do colapso, os empregos desapareceram. É preciso
examinar cada caso em particular, separadamente.
O que está a acontecer no ocidente? Qual é a razão para o fenómeno Trump, como
você disse, nos Estados Unidos? O que está também a ocorrer na Europa? As
elites dominantes separaram-se do povo. O problema óbvio, é a diferença entre os
interesses das elites e os interesses da esmagadora maioria das pessoas.
Claro, devemos tê-lo sempre em mente. Uma das coisas que precisamos fazer na
Rússia é nunca esquecer que o propósito da operação e da existência de qualquer
governo é criar uma vida estável, normal, segura e previsível para o povo e
trabalhar em direcção a um futuro melhor.
Há também a chamada ideia liberal, que sobreviveu ao seu propósito. Os nossos
parceiros ocidentais admitiram que alguns elementos da ideia liberal, como o
multiculturalismo, já não são sustentáveis.
Quando o problema da migração chegou ao auge, muitas pessoas admitiram que a
política do multiculturalismo não é eficaz e que os interesses da população nacional (autótone) devem ser considerados. Embora aqueles que tiveram dificuldades devido a problemas políticos nos seus países de origem também precisem de nossa ajuda. Isso é óptimo, mas e os interesses da sua própria população? Pergunto,
na situação actual, quando o número de migrantes que se dirigem para a Europa
Ocidental não é apenas um punhado de pessoas, mas milhares ou centenas de
milhares?
Lionel Barber: Angela Merkel cometeu um erro.
Vladimir Putin: Um erro grave. Pode criticar-se Trump pela sua
intenção de construir um muro entre o México e os Estados Unidos? Pode ter ido longe
demais. Sim, talvez. Não estou discutindo este ponto. Mas tinha de fazer alguma
coisa sobre o enorme fluxo de migrantes e narcóticos.
Ninguém
faz nada. Dizem que é mau, que também é prejudicial. Diga-me, então o que é que
é bom? O que deveria ser feito? Ninguém propôs nada. Não quero dizer que se
deva construir um muro ou as tarifas aumentadas em 5% ao ano, nas relações
económicas com o México. Não é o que estou a dizer, mas algo tem de ser
feito. Pelo menos, ele está a procurar uma solução.
Onde
quero chegar? Os que estão preocupados com este problema, norte-americanos comuns, olham
para isto e dizem: Bom, pelo menos está a fazer alguma coisa, a sugerir ideias
e a procurar uma solução.
Quanto à
ideia liberal, os seus proponentes não fazem coisa alguma. Eles dizem que tudo
está bem, que tudo é como deveria ser. Mas está mesmo? Estão sentados nos seus
escritórios acolhedores, enquanto os que enfrentam o problema todos os dias, no
Texas ou na Flórida não estão felizes e, em breve, terão problemas próprios. Alguém pensa nessas pessoas?
O mesmo
acontece na Europa. Discuti essa questão com muitos dos meus colegas, mas
ninguém tem uma resposta. Eles dizem que, por várias razões, não podem seguir uma
política de linha dura. Por quê, precisamente? Porque sim. Temos a lei, dizem.
Muito bem, então mudem a lei!
Temos
alguns problemas próprios neste campo. Temos fronteiras abertas com as antigas
repúblicas soviéticas, mas, pelo menos, as pessoas falam russo. Percebe o que
quero dizer? Além do mais, nós, na Rússia, tomamos medidas para simplificar a
situação nesse âmbito. Estamos a trabalhar agora nos países de onde vêm os
imigrantes, ensinando russo nas suas escolas, e também estamos a trabalhar com
eles aqui. Endurecemos a legislação para mostrar que os migrantes têm o dever
de respeitar as leis, os costumes e a cultura deste país.
Por
outras palavras, a situação também não é simples na Rússia, mas começamos a
diligenciar melhorá-la. É mais do que fazem os liberais, porque a ideia liberal
pressupõe que nada precisa ser feito. Os migrantes podem matar, saquear e violar
com impunidade, porque os seus direitos como migrantes devem ser protegidos. Quais
são esses direitos? Todos os crimes têm o seu castigo.
Por
conseguinte, a ideia liberal tornou-se obsoleta. Entrou em conflito com os
interesses da esmagadora maioria da população. Ou considere os valores
tradicionais. Não estou tentando insultar ninguém, porque fomos condenados por
uma suposta homofobia. Mas não temos problemas com pessoas LGBT. Deus nos
livre, deixem-nos viver como quiserem. Mas algumas coisas parecem excessivas
aos nossos olhos.
Eles
alegam agora que as crianças podem desempenhar cinco ou seis papéis de género.
Não posso dizer exactamente quais são esses géneros, não tenho noção. Que todos
sejam felizes, não temos problema com isso. Mas não se deve permitir que essas
ideias se sobreponham à cultura, às tradições e aos valores familiares
tradicionais de milhões de pessoas que compõem a população existente.
Lionel
Barber: Será que inclui o fim desta ideia liberal – isso é
muito importante, como o Snr. diz – porque – o que é que mais referiu? – a
imigração descontrolada, as fronteiras abertas e principalmente, como o senhor
diz, a diversidade como princípio organizador da sociedade? O que mais pensa
que está a terminar em termos de ideia liberal? E diria – se é que posso
acrescentar – que, por esta razão, a religião deve desempenhar um papel
importante como cultura e coesão nacional?
Vladimir
Putin: A religião deve desempenhar a sua função actual. Ela [religião]
não pode ser empurrada para fora deste espaço cultural. Não devemos abusar de
nada.
A Rússia
é uma nação cristã ortodoxa e houve sempre problemas entre o cristianismo
ortodoxo e o mundo católico. É exactamente por esse motivo que direi algumas
palavras sobre os católicos. Há alguns problemas? Sim, há, mas os problemas não
podem ser exagerados e usados para destruir a própria Igreja Católica Romana.
Não podem fazê-lo.
Às
vezes, tenho a impressão de que esses círculos liberais estão a começar a usar
certos elementos e problemas da Igreja Católica como ferramenta para destruir a
própria Igreja.É o que eu considero incorreto e perigoso.
Muito
bem, será que todos esquecemos que todos nós vivemos num mundo baseado em
valores bíblicos? Até os ateus e todos os outros vivem nesse mundo. Não temos de
pensar nesse assunto todos os dias, frequentar a igreja e orar, mostrar assim,
que somos cristãos devotos ou muçulmanos ou judeus. No entanto, no fundo, deve
haver algumas regras humanas fundamentais e valores morais. Neste sentido, os
valores tradicionais são mais estáveis e mais importantes para milhões de
pessoas do que essa ideia liberal, que, em minha opinião, está realmente a
deixar de existir.
Lionel
Barber: Então está a dizer que a religião não é o ópio das
massas?
Vladimir
Putin: Não, não é. Mas tenho a impressão de que você esqueceu
os ensinamentos religiosos, porque já são 12h45, hora de Moscovo, e continua a
torturar-me. Como dizemos, “Será que não teme o castigo divino?” (Risos)
Lionel
Barber: Isto é História. Esperei muito tempo por esta oportunidade.
Tenho uma última pergunta. E obrigado pelo seu ... [interrupção] – continue por
favor.
Vladimir Putin: Por favor, vá, continue.
Henry
Foy: Senhor
Presidente, diria - estava a pensar sobre o que o Snr. acabou de dizer: alguns
dos temas a que se refere repercutiriam em pessoas como Steve Bannon, no
próprio Snr. Trump e nos grupos da Europa que chegaram ao poder. O pensa que, se
a ideia liberal acabou, agora é a vez dos ‘iliberais’ [ing. ‘iliberals’]?
E vê aumentar no mundo o número de novos aliados que vêem a existência humana tal
como o Snr. a vê hoje?
Vladimir
Putin: Como sabe, parece-me que as ideias puramente liberais ou
puramente tradicionais nunca existiram. Provavelmente, existiram uma vez na História
da Humanidade, mas tudo termina, muito rapidamente, num impasse, se não houver
diversidade; de um modo ou de outro, tudo começa a chegar a um extremo.
Várias
ideias e várias opiniões devem ter a oportunidade de existir e manifestar-se,
mas ao mesmo tempo, os interesses do público em geral, de milhões de pessoas e
das suas vidas, nunca devem ser esquecidos. É o que não se pode negligenciar.
Então,
parece-me, que poderíamos evitar grandes transtornos e problemas políticos. Isto
também se aplica à ideia liberal. Não significa que tenha de ser imediatamente
destruída (penso que está a deixar de ser um factor dominante). Este ponto de
vista, esta posição, também deve ser tratada com respeito.
Mas os
liberais não podem simplesmente ditar nada para ninguém, como têm tentado
fazer nas últimas décadas. O diktat pode ser visto em todos os
lugares: tanto na comunicação mediática como na vida real. Até mencionar alguns
assuntos é declarado impróprio. Mas por quê?
Por essa
razão, não sou fã de fechar rapidamente, amarrar, encerrar, desmanchar tudo,
prender ou dispersar todo o mundo. Claro que não. A ideia liberal também não pode
ser destruída; tem o direito de existir e deve mesmo ser apoiada em algumas
coisas. Mas não pode pensar que ela tem o direito de ser o factor dominante
absoluto. Essa é a questão.
Por
favor.
Lionel Barber: O Snr. está em sintonia com Donald Trump. Senhor
Presidente, o Snr. está no poder quase há 20 anos.
Vladimir
Putin: 18 anos.
Lionel
Barber: O Snr. já viu muitos líderes mundiais. Quem é que o
Snr. mais admira?
Vladimir
Putin: Pedro, o Grande.
Lionel
Barber: Mas ele está morto.
Vladimir
Putin: Ele viverá enquanto a sua causa estiver viva como também
a causa de cada um de nós. (Risos). Viveremos enquanto a nossa causa viver.
Se você
quer dizer líderes actuais de outros países e Estados, das pessoas com as quais
podia me comunicar, fiquei muito seriamente impressionado com o antigo Presidente da França, o Snr.
Chirac. É um verdadeiro intelectual, um verdadeiro professor, um homem muito
equilibrado e muito interessante. Quando era Presidente, tinha a sua própria
opinião sobre cada assunto, sabia como defendê-la e respeitava sempre as opiniões
dos seus parceiros.
Na História
moderna, observando com uma visão mais ampla, há muitas pessoas boas e muito
interessantes.
Lionel
Barber: Pedro, o Grande, o criador da Grande Rússia. Precisa
dizer mais alguma coisa? A minha última pergunta, Senhor Presidente. Os grandes
líderes preparam sempre a sucessão. Lee
Kuan Yew preparou a sucessão. Então, partilhe connosco qual seria o
processo pelo qual o seu sucessor será escolhido.
Vladimir
Putin: Posso dizer sem exageros, que tenho pensado nisso,
desde 2000. A situação muda e certas necessidades das pessoas também mudam. No
fim – e digo-o sem teatralidade ou exagero – no fim, a decisão deve ser tomada pelo
povo da Rússia. Indepententemente do que e como o líder actual faz, ou de quem
ou de como ele representa, é o eleitor que tem a palavra final, o cidadão da
Federação Russa.
Lionel
Barber: Então a escolha será aprovada pelo povo russo numa
votação? Ou através da Duma?
Vladimir
Putin: Por quê através da Duma? Por meio de voto secreto, directo
e universal. Claro que é diferente do que vocês têm na Grã-Bretanha. Nós somos
um país democrático. (Risos)
No seu
país, um líder foi embora, e o segundo dirigente, que é para todos os efeitos, a
principal figura do Estado, não é eleito pelo voto directo do povo, mas pelo
partido no poder.
É
diferente da Rússia, porque somos um país democrático. Se os nossos altos
funcionários partirem por algum motivo - ou porque querem se aposentar da
política como Boris Yeltsin ou porque o seu mandato termina - realizamos uma
eleição por meio de voto secreto, directo e universal.
O mesmo
acontecerá neste caso. É claro que o líder actual apoia sempre alguém, e esse
apoio pode ser substancial, se a pessoa apoiada tiver o respeito e a confiança
das pessoas, mas no final, a escolha é sempre feita pelo povo russo.
Lionel Barber: Não posso deixar de apontar que o Snr. assumiu como
presidente antes da eleição.
Vladimir Putin: Sim, isso é verdade. E daí? Eu estava exercer como
presidente e, para ser eleito e me tornar Chefe de Estado, tive de participar numa
eleição, o que fiz.
Estou
grato ao povo russo pela sua confiança naquela época e depois, nas eleições
seguintes. É uma grande honra ser o dirigente da Rússia.
Lionel
Barber: Senhor Presidente, obrigado pelo tempo que dispensou
ao Financial Times, em Moscovo, no Kremlin.
Vladimir
Putin: Obrigado pelo vosso interesse nos acontecimentos na
Rússia e sobre o que a Rússia pensa sobre os assuntos internacionais actuais. E
obrigado pela nossa conversa interessante de hoje. Creio que foi muito
interessante.
Muito obrigado.